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Wagner Soares de Lima

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Reflexões sobre trabalho, vocação, instituições, afetos e as travessias invisíveis que moldam quem somos. Aqui, escrevo com escuta, compartilho ideias com alma e transformo vivências em pensamento — para quem busca sentido, recomeço ou apenas companhia lúcida no caminho.

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A Festa Acabou: o mundo está reconfigurando o Capitalismo, com ou sem o Ocidente

  • Foto do escritor: Wagner Soares de Lima
    Wagner Soares de Lima
  • 31 de out.
  • 20 min de leitura

A crise da democracia, o colapso da globalização irrestrita e a ascensão da nova direita no tabuleiro de um novo grande jogo.


por Wagner Soares de Lima



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Vamos compreender quais são os algoritmos civilizacionais do desenvolvimento, o alguns dos motivos das crises atuais e os caminhos possíveis para o Brasil, a partir da análise de uma palestra do ex-ministro Paulo Guedes.


Recentemente assisti o vídeo de uma palestra do ex-ministro da Economia, Paulo Guedes, no Congresso Nacional de Economia e Finanças (CONEF), realizado na Universidade Vila Velha (UVV), no Espírito Santo, em setembro de 2024. Embora nem sempre concorde com todas as medidas adotadas por Guedes durante sua gestão, reconheço que ele possui uma capacidade incomum de sintetizar grandes movimentos históricos e econômicos com clareza, provocação e, muitas vezes, bom humor.


Seu diagnóstico sobre o cenário global e os desafios do Brasil me pareceu tão amplo e articulado que decidi escrever este texto com base em suas falas, costurando minhas impressões pessoais e referências acadêmicas que ajudam a enriquecer o debate. Reconheço-me numa perspectiva de centro-direita, com inclinação ao ordo-liberalismo (aquele modelo de Estado Social de Mercado muito associado à reconstrução da Alemanha pós-guerra).

 

📺 Antes de continuar esta leitura, vale um convite:

Para compreender plenamente o que será discutido aqui, é importante ouvir Paulo Guedes em sua própria voz. Convido você a assistir ao vídeo e depois retorne a este texto; a reflexão ganha muito mais sentido quando se entende o contexto e a força dos argumentos originais.


 

A seguir, compartilho essa análise em blocos temáticos que refletem a estrutura argumentativa da palestra.

 

Democracia e Mercado: os algoritmos civilizacionais da humanidade


Para Guedes, a história da humanidade pode ser resumida como uma oscilação entre ascensão e queda de impérios; sempre tendo como motor o comércio e a organização política. Ele afirma que "os dois grandes algoritmos da civilização são a democracia e o mercado".


Esses mecanismos, segundo ele, foram se desenvolvendo como formas descentralizadas, ou melhor, difusas de tomada de decisão. Desde as primeiras trocas comerciais na Babilônia, passando por impérios como o Romano e os centros urbanos gregos, há um fio condutor de evolução baseada em trocas voluntárias e estruturas participativas. Ainda quando não eram, o movimento não linear, contudo, lentamente progressivo conduziu a isso: mais agentes participando, numa grande inteligência coletiva, possível de ser coordenada, mas não controlada centralmente.


Com seu humor característico, Guedes exemplifica: "Um dia, um sujeito ofereceu uma pele de cabrito, o outro disse que queria duas. Assim começou o comércio voluntário, que mudou o mundo". Ele retoma esse raciocínio ao dizer que Atenas, cosmopolita e comercial, perdeu para Esparta, militarista, e isso representou um retrocesso na história. Segundo ele, a humanidade evoluiu quando conseguiu combinar os dois algoritmos: democracia e mercado em sistemas abertos.


Essa leitura encontra respaldo em Amartya Sen (1999), para quem liberdade é tanto o meio quanto o fim do desenvolvimento. Sen argumenta que a prosperidade não decorre apenas do crescimento econômico, mas da expansão das liberdades reais: políticas, econômicas, sociais e cognitivas  que permitem às pessoas escolher e agir sobre suas próprias vidas. Para ele, democracia e mercado não são opostos: são formas complementares de descentralização racional.


A democracia amplia a liberdade de expressão e o controle público das decisões, enquanto o mercado amplia as escolhas materiais e incentiva a inovação. Ambos se alimentam da mesma matriz moral: a confiança na capacidade humana de decidir coletivamente o que é melhor para si.


A verdadeira riqueza das nações, diz Sen, está na possibilidade de cada indivíduo deliberar, participar e criar valor: seja votando, seja empreendendo.

Por outro lado, Ha-Joon Chang (2008) oferece um contraponto necessário.Ele lembra que, na prática histórica, nenhum país se industrializou apenas com a força das trocas voluntárias. Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha, Japão e Coreia do Sul recorreram a políticas protecionistas, subsídios estatais e forte intervenção governamental para desenvolver suas capacidades produtivas antes de abrir seus mercados ao mundo.


Chang acusa o discurso liberal de ocultar esse percurso, ao “chutar a escada” que sustentou o próprio desenvolvimento das potências ocidentais. Assim, o autor não nega a importância do mercado, mas afirma que a liberdade econômica precisa ser construída sobre uma base institucional sólida, capaz de proteger setores estratégicos e promover o aprendizado tecnológico.


Ao confrontar Sen e Chang, o argumento de Guedes se torna ainda mais interessante: se o progresso humano depende da descentralização, o desafio não é escolher entre Estado e Mercado, mas garantir que ambos operem em favor da liberdade e da responsabilidade coletiva. 


A democracia e o mercado, quando degeneram, produzem populismo e monopólio; mas quando se equilibram, geram civilização.

 

Pax Americana: o longo ciclo da reconstrução e o baile que chegou ao fim


Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos lideraram um esforço inédito de reconstrução internacional. Em vez de punir os vencidos, investiram massivamente com destaque para o Plano Marshall, que injetou cerca de US$ 100 bilhões na Europa em uma década. Guedes chama esse período de "Pax Americana", e afirma que foi o único momento da história em que os vencedores decidiram reconstruir seus antigos inimigos.


"Foi uma espécie de baile funk global", brinca Guedes, dizendo que o Ocidente dançou, lucrou e globalizou até as 3 da manhã. Mas agora, segundo ele, o baile acabou. A engrenagem de crescimento coordenado pelo Ocidente esgotou seu ciclo. O tênis Nike que vinha do Vietnã e o iPhone montado na China revelam uma dependência logística global que entrou em xeque com a pandemia e os conflitos geopolíticos.


Essa leitura coincide com análises de Martin Wolf (2023), colunista do Financial Times, que afirma que a ordem liberal internacional passa por uma crise de legitimidade e eficácia. Mas autores como Joseph Nye (2020) lembram que os valores democráticos e as alianças institucionais ainda oferecem resiliência ao modelo ocidental desde que se adaptem aos novos tempos. E quais adaptações seriam essas? Seria o caminho comum da Ásia?

 

Atlântida Latina: como a América Latina se perdeu na história


Um dos momentos mais polêmicos da fala de Guedes foi a crítica à América Latina, que ele batizou de "Atlântida Latina". Segundo ele, o continente afundou por escolhas equivocadas: “Enquanto a Ásia subia, a América Latina virava a Atlântida. Afundou com populismo e socialismo estatizante”. Ele acusa os governos da região de acreditarem que o Estado poderia ser o motor do desenvolvimento, sem gerar antes a riqueza necessária para sustentar os direitos prometidos.


Segundo essa visão, a América Latina importou os discursos dos derrotados da Segunda Guerra Mundial, especialmente da esquerda europeia, e transformou o Estado num "elefante gordo" que não consegue caminhar. O problema, diz Guedes, não é o Estado em si, mas o desequilíbrio: prometer um Estado de bem-estar sem ter a base produtiva para sustentá-lo. Aqui, ele cita ironicamente: “Tentaram distribuir o que não havia sido produzido ainda”.


Autores como Fernando Henrique Cardoso (1972) e Celso Furtado (2000) desafiaram a ideia de que a América Latina seria um “continente perdido” por incapacidade própria. Para Cardoso, na teoria da dependência, o subdesenvolvimento não é uma etapa anterior ao desenvolvimento  é o resultado direto da forma desigual como o capitalismo mundial se organiza, subordinando as economias periféricas às dinâmicas do centro. Furtado, por sua vez, argumenta que o atraso latino-americano não nasce da falta de modernização, mas da modernização dependente: um processo que reproduz internamente as desigualdades estruturais impostas de fora.


Mais tarde, Guillermo O’Donnell (1998) amplia o debate ao mostrar que, mesmo após a redemocratização, muitos países da região mantiveram democracias delegativas, nas quais os cidadãos elegem líderes fortes, mas abrem mão de cobrar prestação de contas e fortalecer instituições. O resultado é um Estado formalmente democrático, porém fragilizado em sua capacidade de garantir direitos e formular políticas públicas efetivas. Em conjunto, essas visões formam um contraponto poderoso à noção de um continente “fracassado”.


Elas revelam que o impasse latino-americano não está na suposta inferioridade cultural ou moral de seus povos, mas na combinação entre heranças coloniais, dependência econômica e fragilidade institucional: fatores historicamente agravados pela própria lógica da ordem internacional que a Pax Americana ajudou a consolidar.


Sendo ou não uma questão estrutural da qual a América Latina poderia ter se desvencilhado há muito tempo, com escolhas mais racionais e menos ideológicas, a pergunta que permanece é: o que fazer agora?


Para Paulo Guedes, abandonar a penetração ideológica socialista já seria o primeiro passo para romper com décadas de paralisia produtiva e dependência do Estado como motor da economia. Mas seria isso o bastante?


Mesmo reconhecendo o peso das estruturas descritas por Furtado e Cardoso, talvez o verdadeiro impasse latino-americano não esteja apenas fora, nas engrenagens do sistema global, mas dentro de nós mesmos: na mentalidade que naturaliza a dependência e teme a liberdade econômica.


A provocação é essa: o que realmente nos impede de crescer; o mundo, ou o modo como decidimos lidar com ele?

 

O salto asiático: capitalismo adaptado, reformas e pragmatismo

Em contraponto à “Atlântida Latina”, Guedes exalta o salto asiático. Ele afirma que Japão, Coreia do Sul, Cingapura, Taiwan e, mais recentemente, a China e a Índia, souberam aproveitar o modelo capitalista ocidental adaptando-o às suas culturas, instituições e desafios.


Para ele, a China é o exemplo mais emblemático: um país comunista que virou capitalista sem assumir isso formalmente. “É como se o mamute tivesse entrado na piscina das crianças”, brinca Guedes: mostrando que o sistema global foi desenhado para economias médias, e agora está sendo pressionado por um gigante que rompe as bordas.


Para Kishore Mahbubani (2018), o sucesso asiático não é mero acaso histórico, mas resultado de duas virtudes civilizacionais que o Ocidente gradualmente perdeu: meritocracia e pragmatismo. Enquanto as democracias ocidentais se tornaram reféns de ciclos eleitorais curtos e debates ideológicos estéreis, as sociedades asiáticas privilegiaram educação, estabilidade e visão de longo prazo. Mahbubani sustenta que o século XXI será asiático não apenas pelo deslocamento do poder econômico, mas pela mudança de mentalidade estratégica; uma cultura estatal que planeja décadas à frente e entende que prosperidade exige continuidade. Seu alerta, contudo, é claro: a Ásia precisa provar que pode liderar sem reproduzir o modelo hegemônico e excludente que criticou no Ocidente.


Já Barry Eichengreen (2019) adverte que o modelo de crescimento asiático, embora eficiente, repousa sobre bases frágeis quando analisado sob o prisma institucional. O mesmo centralismo que assegura estabilidade pode se transformar em rigidez política e limitação da inovação social. Eichengreen enfatiza que desenvolvimento sustentável depende de instituições capazes de distribuir poder, garantir transparência e permitir contestação. Sem isso, o sucesso econômico se torna uma forma de “eficiência autoritária”; produtiva, mas vulnerável a choques externos e à corrosão interna da confiança pública. O progresso material, argumenta o autor: não substitui o capital moral e institucional que sustenta as sociedades abertas.


Por fim, Dani Rodrik (2021) reforça a ideia de que não há um único modelo de capitalismo universal, mas múltiplos equilíbrios possíveis entre Estado, Mercado e Sociedade. Ele ressalta que o crescimento acelerado de países como China e Vietnã, ancorado em exportações e investimentos públicos, enfrenta limites estruturais quando precisa avançar para estágios que envolvem bem-estar, direitos e equidade. Rodrik propõe uma visão mais plural: a prosperidade duradoura exige combinar abertura externa com legitimidade interna, evitando tanto o isolamento quanto a submissão às forças globais. O desafio, segundo ele, é reinventar o capitalismo de modo que sirva às pessoas; e não apenas aos indicadores macroeconômicos.


Em síntese, Mahbubani enxerga o Oriente, em especial a Ásia, como herdeiro legítimo do século XXI, enquanto Eichengreen e Rodrik lembram que nenhum império dura apenas pela eficiência; é preciso legitimidade e propósito. O futuro talvez não pertença a quem cresce mais rápido, mas a quem for capaz de equilibrar poder, liberdade e dignidade humana em uma nova ordem multipolar.


Nenhum império dura apenas pela eficiência; é preciso legitimidade e propósito.

 

 

O cenário de fundo: o ressentimento da classe média e a ascensão da nova direita

 

Um dos pontos mais instigantes da palestra foi a explicação que Paulo Guedes oferece para a ascensão da nova direita em várias partes do mundo. Ele identifica um ressentimento difuso na classe média ocidental, que percebeu que os benefícios prometidos pela globalização e pelo Estado de bem-estar não chegaram até ela.


Enquanto elites financeiras e tecnológicas acumularam ganhos e as camadas mais pobres foram parcialmente protegidas por políticas assistenciais, a classe média viu seu poder de compra estagnar, suas profissões perderem prestígio e seus valores culturais serem ridicularizados.

Diante disso, surgiu uma reação conservadora, expressa na busca por segurança, emprego e voz, nas palavras de Guedes. Ele critica a forma como a esquerda ocidental teria se deslocado para pautas identitárias, ambientais e comportamentais que, embora legítimas, deixaram de dialogar com a ansiedade material da maioria, que antes estava silenciosa.


Nesse vácuo, emergiu um populismo de direita com forte apelo emocional e simbólico, representado por líderes como Donald Trump, Jair Bolsonaro e Javier Milei. Segundo Guedes, não se trata de culpar indivíduos, mas de reconhecer um fenômeno histórico em curso que expressa a frustração de milhões de eleitores.


Essa leitura encontra respaldo em Patrick Deneen, que em Why Liberalism Failed denuncia a desconexão entre as elites liberais globalizadas e o cidadão comum, afastado das promessas democráticas que um dia lhe garantiram pertencimento. Deneen aponta que o colapso das instituições tradicionais de comunidade, como a família, a igreja e a nação, gerou o vazio que alimenta as direitas insurgentes. Francis Fukuyama, por sua vez, identifica nesse processo o fenômeno da política do reconhecimento, em que o desejo legítimo de ser visto e respeitado, quando negligenciado, transforma-se em ressentimento e identitarismo reativo.


Há, porém, alertas importantes que não podem ser ignorados. Nancy Fraser argumenta que a ascensão da nova direita é também resultado de uma aliança entre neoliberalismo e populismo, uma combinação que canaliza a raiva popular contra minorias e instituições, mas mantém intacta a própria lógica de mercado que criou o descontentamento inicial.


Para Fraser, a revolta é real, mas o seu alvo foi mal direcionado, ou até engenhosamente redirecionado; a insatisfação legítima acabou sendo instrumentalizada por narrativas que reforçam as desigualdades em vez de enfrentá-las. Yascha Mounk acrescenta que, quando as democracias liberais perdem capacidade de resposta e parecem reféns de suas próprias elites, as massas tendem a buscar líderes que prometem devolver-lhes voz, mesmo que isso ocorra provocando instabilidade democrática. Anne Applebaum reforça essa preocupação ao mostrar como a retórica da restauração e da moralidade, em muitos casos, esconde projetos de poder personalistas que se alimentam do medo e da nostalgia para corroer as instituições de dentro para fora.


Aqui, eu pontuo de forma muito incisiva: diante desse cenário, compreender o avanço da nova direita exige empatia e vigilância em igual medida. 


A frustração da classe média ocidental é legítima e precisa ser escutada, mas transformar ressentimento em programa político é sempre um risco.

A cura para o excesso de Estado não é o colapso das instituições, e sim a sua revitalização; a resposta ao elitismo global não é o isolacionismo, mas a reconstrução do pacto democrático sobre bases mais sólidas e transparentes. A tarefa que se impõe, sobretudo para uma visão de centro-direita, é equilibrar razão e sensibilidade: reconhecer o clamor de quem se sente deixado para trás sem ceder à tentação autoritária que ronda as margens desse movimento.


O desafio é compreender o grito por pertencimento que vem das ruas e das urnas, traduzindo-o em reformas que restaurem a confiança no Estado, na economia e na democracia, sem que o medo ou o ressentimento se tornem guias da política. Entre a negação e a capitulação, o caminho possível é o da razão empática, que acolhe o desconforto da sociedade, mas resiste à simplificação moral que transforma adversários em inimigos.

 

Brasil: Energia, Alimentos e um Futuro Inevitável?


Se há uma imagem que resume o tom de urgência e, ao mesmo tempo, de oportunidade, que Paulo Guedes tentou imprimir à sua fala nesse evento de 2024, é aquela em que ele imagina o Brasil gritando no canto da sala: “Olha a gente aqui!”, tentando chamar atenção dos grandes players do mundo, que até então nunca deram muita bola.


"Com sua escala produtiva, diversidade de biomas e domínio técnico, o Brasil se consolidou como fornecedor-chave de alimentos para o mundo. Seu papel será ainda mais vital nas próximas décadas."  The State of Food and Agriculture 2023 | FAO – Food and Agriculture Organization of the United Nations 

 

Mas o jogo mudou. E, segundo ele, ignorar o Brasil está se tornando um luxo que o mundo não pode mais bancar. Ao longo de sua exposição, Guedes constrói um argumento baseado na reconfiguração geopolítica e produtiva do século XXI, e conclui com uma pergunta implícita, mas poderosa: será que, mesmo sem ter feito tudo certo, o Brasil se tornou um ponto de apoio inevitável para o futuro global?

 

"O Brasil ocupa uma posição única no sistema energético global, sendo ao mesmo tempo grande produtor de energia renovável e uma potência agrícola, além de sua estabilidade geopolítica relativa." World Energy Outlook 2024 / IEA – International Energy Agency

 

As vantagens comparativas do Brasil no século XXI


Paulo Guedes argumenta que o Brasil reúne um conjunto raro de condições estruturais que o colocam em posição privilegiada no cenário global.


Ele destaca três pilares estratégicos:

  1. energia limpa,

  2. segurança alimentar e

  3. posição geográfica.


A partir dessa base, é possível ampliar a análise e compreender que o país possui ao menos cinco vetores que definem sua vantagem comparativa futura: três deles mencionados por Guedes e dois desenvolvidos aqui como desdobramentos da sua lógica.

 

1. Energia limpa e transição viável


Para Guedes, o primeiro pilar é a energia limpa abundante. O Brasil é, essencialmente, um país hidrelétrico. Sua matriz energética combina fontes hídricas, biomassa, solar e eólica, o que o coloca entre os líderes mundiais em geração renovável. Isso confere uma vantagem estratégica num momento em que as nações disputam protagonismo na transição para economias de baixo carbono.


No entanto, a energia brasileira não é apenas limpa, mas também viável. Ainda dependemos parcialmente de petróleo, e essa dependência deve ser encarada sem hipocrisia. O Brasil possui vastas reservas no pré-sal e uma nova fronteira de exploração na margem equatorial. Esse petróleo, embora não renovável, representa uma energia mais barata e menos poluente do que o carvão e o gás natural que ainda sustentam economias desenvolvidas.


Em um mundo que ainda atravessa o período de transição energética, o Brasil é capaz de ofertar energia renovável e, ao mesmo tempo, dispor de reservas que garantem estabilidade e segurança de abastecimento. Isso o torna um ator energético híbrido, essencial para a reorganização global das cadeias de suprimento.

 

2. Segurança alimentar e eficiência produtiva


O segundo pilar é a segurança alimentar. Guedes costuma dizer, com ironia, que “enquanto alguns plantam chips, nós plantamos comida”. Por trás da provocação há um fato incontestável: o Brasil é uma potência agroalimentar. Mas essa força não se deve apenas à extensão territorial ou ao clima favorável; ela é fruto de uma eficiência tecnológica singular.


O país é capaz de realizar até três safras anuais em algumas regiões, um feito quase inédito no mundo. A integração entre floresta, lavoura e pecuária, o uso de sementes adaptadas e o domínio da biotecnologia agrícola permitem que o solo seja utilizado de forma contínua, com menor impacto ambiental e maior produtividade. O agronegócio brasileiro é sustentado por inovação científica, conectividade no campo e adaptação climática. Se há uma área em que o país exemplifica o conceito de sustentabilidade aplicada à escala, é essa.

 

3. Posição geográfica, paz climática e riqueza geológica


O terceiro pilar mencionado por Guedes é a posição geográfica. O Brasil é, de fato, um território privilegiado por sua localização e por sua estabilidade natural. Está fora das zonas de conflito e distante dos cinturões de instabilidade climática mais severa. O Atlântico Sul não é conhecido por furacões nem tufões, o país não possui vulcões ativos e não está sobre grandes fraturas de placas tectônicas.


Essa relativa paz climática e geológica cria condições únicas para a vida, a produção e o investimento de longo prazo. Mesmo diante das mudanças climáticas globais, o Brasil tende a sofrer menos que outras regiões e, ainda assim, dispõe de recursos para se adaptar: terras férteis, rios de grande vazão, aquíferos subterrâneos profundos, rios voadores que garantem o regime de chuvas e uma biodiversidade que é laboratório natural para a biotecnologia e para a indústria farmacêutica.


Além disso, o país é detentor de importantes reservas de terras raras, recursos indispensáveis à indústria eletrônica e à transição energética. Em um mundo em que a China domina a extração dessas matérias-primas, o Brasil surge como o principal acervo estratégico de minerais críticos do Ocidente, capaz de reduzir a dependência global de um único fornecedor.

 

4. População conectada e poder digital


O quarto pilar, ainda pouco debatido por Guedes, é o tamanho e o perfil digital da população brasileira. Com mais de duzentos milhões de habitantes, o Brasil é uma das maiores sociedades conectadas do planeta. A penetração de internet móvel e de smartphones é altíssima, o que nos coloca entre os cinco países mais engajados em plataformas digitais. Mesmo convivendo com o analfabetismo funcional, a população brasileira é digitalmente inserida, criativa e participativa.


Essa combinação paradoxal produz um campo fértil para a inovação e para o consumo de conteúdo. O brasileiro está presente em praticamente todas as redes, influencia tendências culturais, movimenta mercados e representa uma fatia expressiva dos lucros de gigantes globais como Netflix, Spotify e TikTok. O país é um celeiro de audiência e de dados — e esse ativo imaterial ainda é subestimado em nossas políticas econômicas.

 

5. Brasil, centro potencial do processamento de dados mundial


O quinto pilar surge da convergência entre energia limpa, estabilidade geográfica e conectividade. O Brasil reúne, simultaneamente, as três condições que definem os locais ideais para o funcionamento de data centers e infraestrutura de computação em nuvem: energia barata e estável, abundância de água para refrigeração e segurança ambiental e geopolítica.


Essas características tornam o país candidato natural a se tornar o polo latino-americano, e possivelmente global, de processamento de dados. À medida que as empresas de tecnologia buscam diversificar seus pontos de hospedagem, reduzindo riscos de guerra e de desastres naturais, o Brasil desponta como um ambiente seguro e eficiente para a instalação de grandes complexos de servidores. Isso significa que, além de exportar alimentos e energia, o país pode também exportar inteligência computacional, participando da nova economia digital não apenas como consumidor, mas como hospedeiro da informação mundial.

 

Um novo mapa de oportunidades


Esses cinco pilares: energia, alimentos, geografia, população e dados, compõem o que se pode chamar de nova geopolítica da relevância brasileira. O país não é apenas um fornecedor de recursos; é um território capaz de sustentar civilizações em tempos de escassez.


A questão central, porém, não está nos ativos, e sim em como administrá-los.

Energia e água, se mal geridas, geram dependência; terras férteis, se exploradas sem inteligência, viram deserto; dados, se entregues sem soberania, viram submissão tecnológica. A vantagem comparativa brasileira depende de maturidade institucional e de visão de longo prazo. O Brasil tem tudo para ser o país que abastece, conecta e processa o mundo, mas isso exigirá planejamento, governança e um sentido civilizatório que transcenda ideologias.

 

Mas só ter os ativos não basta


O problema, e Guedes reconhece isso com bom humor, é que o Brasil não sabe fazer o dever de casa. “Não temos segurança jurídica. Trocamos as regras do jogo no meio do jogo. Cada eleição é um trauma, não uma continuidade.” É aqui que entra o desafio da previsibilidade institucional.


Para transformar potencial em protagonismo, o país precisa:

  • Reduzir o custo Brasil

  • Atrair investimento externo com estabilidade fiscal e regulatória

  • Rever a estrutura tributária e de incentivos

  • Engajar-se em acordos de comércio multilaterais e bilaterais com foco estratégico


Nada disso é novo, mas soa ainda mais urgente diante da oportunidade única aberta pela fragmentação das cadeias produtivas globais e pela busca por parceiros confiáveis (o tal "friendshoring").

 

Da irrelevância à centralidade


O trecho em que Guedes compara o Brasil a um país que ninguém chama para dançar, mas que de repente se vê disputado na pista, tem um quê de tragicômico. Mas é também uma metáfora eficaz. Durante décadas, fomos periféricos no jogo das grandes decisões. Agora, podemos ser centrais, mas precisamos estar preparados.


Ele chama isso de “inflexão estratégica”: ou o Brasil aproveita a nova lógica do capitalismo verde e das cadeias de confiança, ou seguirá eternamente sendo o país do futuro que nunca chega.

 

Um convite à responsabilidade


No fundo, o tom final das palavras de Paulo Guedes não é de euforia, mas de chamado à maturidade nacional; faço minhas o tom e boa parte as palavras.


Sintetizo assim: “podiam nos ignorar antes, mas não agora.” E o subtexto é claro: chegou a hora de crescer. Não apenas economicamente, mas politicamente, institucionalmente, civilizatoriamente.


Se o mundo está mudando de fase, o Brasil tem o que oferecer. Mas precisa parar de se sabotar.

 

Conclusão: um diagnóstico provocador para um Brasil em encruzilhada


A palestra de Paulo Guedes, e todo o debate que ela suscita, revela que estamos diante de um tempo em que compreender vale mais do que reagir. O mundo não precisa de certezas dogmáticas, mas de pensamento articulado e coragem de síntese. A nós, brasileiros, resta a tarefa de transformar observação em projeto e potencial em direção. Tenho insistido, como professor e pesquisador, que a maturidade nacional passa pela capacidade de enxergar o país como parte de um sistema civilizacional em transição. Isso exige abandonar o vitimismo periférico e assumir uma posição ativa, competitiva e moralmente responsável no jogo global.


Somos um povo com comprovada capacidade de ultrapassar fronteiras e construir negócios globais. Empresas como JBS, Embraer, WEG, Ambev, Vale, Petrobras, Natura, Suzano, Gerdau, Marcopolo, Itaú Unibanco se tornaram símbolos de uma competência silenciosa, de uma inteligência produtiva que venceu a barreira do provincianismo e projetou o Brasil no mapa das grandes corporações internacionais. Nas últimas negociações entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos, foram justamente esses agentes econômicos que desempenharam papel relevante na intermediação de acordos. É verdade que o fizeram com interesses corporativos claros, mas também é fato que, ao contrário das forças políticas frequentemente embriagadas por ideologias, esses grupos conseguiram propor soluções de equilíbrio, demonstrando que pragmatismo e racionalidade ainda são possíveis quando a paixão política cede espaço à responsabilidade.


Se nossos empresários são capazes de construir impérios econômicos no exterior, nós, brasileiros, podemos igualmente produzir, desenvolver e acumular poupança, gerando riqueza antes de pensar em distribuí-la. Essa é uma lógica civilizatória que não pode ser invertida: só se distribui o que primeiro se cria. O desafio nacional é transformar o talento individual em prosperidade coletiva. Precisamos manter firme a lucidez para não cair em tentações, nem à direita, nem à esquerda, porque os extremos são, em essência, faces complementares da mesma incapacidade de compreender o tempo histórico.


Também é urgente superar a memória nostálgica das lutas de guerrilha socialista de uma geração que já se foi. Essa geração alcançou o poder, mas não parece ter compreendido que revoluções que se eternizam como ressentimento acabam destruindo aquilo que ajudaram a construir. O país precisa de serenidade intelectual para virar essa página e escrever outra, mais pragmática e menos emocional. Tal como a Ásia, devemos pensar em planos de desenvolvimento nacional de longo prazo, sustentados em educação, tecnologia e integração produtiva, mas sem abrir mão das ferramentas democráticas que garantem a legitimidade de cada passo.


Do mesmo modo, não podemos permitir que o ressentimento ganhe força e que a classe média, tantas vezes invisível e desamparada, seja cooptada por projetos personalistas que se alimentam do medo e da desinformação. O caminho da reconstrução nacional não passa por salvadores da pátria, mas por instituições sólidas, políticas previsíveis e uma sociedade civil que se reconheça corresponsável pelo próprio destino.

 

Sim a festa acabou e o que o Brasil faz agora?


A festa acabou, mas ela nunca foi realmente do Brasil. A festa foi do capitalismo liberal ocidental, que após a Segunda Guerra floresceu sob a Pax Americana, embalado pela crença de que o crescimento seria infinito e de que o mercado global se autorregularia em harmonia. Durante décadas, essa lógica comandou o baile e parecia acomodar todos os convidados. A analogia usada por Paulo Guedes é precisa: o sistema global foi como uma piscina de crianças, onde todos queriam brincar. Na piscina, coube a Coreia e o Japão, economias médias e disciplinadas, mas não teve espaço para a China, o mamute que entrou na piscina e transbordou as bordas.


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A festa está se encerrando porque o equilíbrio que sustentava o Ocidente se rompeu. E quem encerra o baile não é um Estado autoritário ou uma potência rival, mas as próprias democracias representativas que agora expressam o ressentimento da classe média, silenciosa por décadas e hoje reativa. São esses governos eleitos que, em nome da proteção nacional e do medo da perda de status, estão fechando as portas do baile global, interrompendo a farra da globalização irrestrita.


O problema é que o fim dessa festa ocorre justamente quando o Brasil poderia voltar a se levantar e respirar. As grandes cadeias produtivas que alimentaram o crescimento das nossas multinacionais foram construídas dentro dessa lógica de integração mundial. Agora, sem o mesmo ritmo de incentivos e com um cenário mais fragmentado, o país precisa se reinventar para não perder o protagonismo. O mundo entra em uma nova fase, e o amanhecer que sucede o baile é o momento em que, ainda meio tonto da ressaca, os povos se dão conta de que não há mais tempo para ilusões; é hora de se preocupar com o que realmente importa para o futuro do planeta. Nesse novo dia, o Brasil não pode ser dispensado.


Quando o mundo era uma festa de excessos, cada país se divertia conforme o limite de suas próprias vantagens, e muitos ainda se beneficiavam dos espólios do colonialismo. Agora, em tempos de restrição e realismo, a lógica muda. A ordem que se forma é mais seletiva, mais cautelosa, e quem quiser prosperar precisará fazê-lo com estratégia e sobriedade. O Brasil tem ativos concretos, e não apenas promessas: energia limpa, alimentos, território, diversidade e estabilidade geográfica. Esses recursos não devem ser entregues, mas negociados com inteligência. Se forem desperdiçados, o fracasso será nosso, não por falta de potencial, mas por incapacidade de aproveitá-lo. A festa acabou, e o que começa agora é o tempo da responsabilidade.


 

Referências


Applebaum, A. (2020). Twilight of democracy: The seductive lure of authoritarianism. Doubleday.


Cardoso, F. H., & Faletto, E. (1972). Dependência e desenvolvimento na América Latina. Zahar.


Chang, H.-J. (2008). Chutando a escada: A estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. Unesp.


Deneen, P. (2018). Why liberalism failed. Yale University Press.


Eichengreen, B. (2019). The populist temptation: Economic grievance and political reaction in the modern era. Oxford University Press.


Esteves, R. (2024, 27 de fevereiro). Desafio global, ação local: Brasil na encruzilhada da crise climática. Exame Insight. Recuperado de https://exame.com/colunistas/regina-esteves/desafio-global-acao-local-brasil-na-encruzilhada-da-crise-climatica/


Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). (2023). The state of food and agriculture 2023. Recuperado de https://www.fao.org/state-of-food-agriculture/en


Fraser, N. (2022). The old is dying and the new cannot be born. Verso.


Fukuyama, F. (1992). The end of history and the last man. Free Press.


Furtado, C. (2000). Formação econômica do Brasil. Companhia Editora Nacional.

International Energy Agency (IEA). (2024). World energy outlook 2024. Recuperado de https://www.iea.org/reports/world-energy-outlook-2024


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Wagner Soares de Lima

Autor

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Wagner Soares de Lima é professor, pesquisador e autor com trajetória transdisciplinar nas áreas de administração, segurança pública, subjetividade e educação. Já atuou como oficial da Polícia Militar, técnico em segurança universitária e hoje leciona no Instituto Federal de Rondônia.

 

Sua escrita mistura experiência de vida com pensamento crítico e sensível, transitando entre ensaio, autobiografia, espiritualidade e psicologia. Seus livros exploram temas como vocação, dor emocional, sentido de vida e os impactos humanos das instituições, sempre com o propósito de despertar consciências, curar histórias e reencantar trajetórias.

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